Recentemente, no dia 13 de julho, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa a proposta de reforma administrativa (PEC 32/2020) promoveu uma audiência pública para tratar da aquisição de estabilidade no serviço público [1]. Na oportunidade, foram apresentados diversos argumentos tanto para defender o fim da estabilidade quanto para reafirmar a necessidade de manutenção desta garantia jurídica aos servidores públicos [2]. A intenção do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, é que a referida proposta de emenda constitucional seja posta em votação até o final de agosto [3].
Entre as várias mudanças projetadas, certamente o fim da estabilidade para diversos cargos públicos é uma das mais polêmicas e controversas [4]. A razão é óbvia: altera a principal garantia do funcionalismo público brasileiro e inclui no regime jurídico a noção privada de “vínculo de experiência”, de “cargo com prazo determinado” e de “avaliação periódica das metas de desempenho”.
Hoje, segundo o artigo 41 da Constituição, introduzido no cenário constitucional pela Emenda 19/1998, são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. Ainda prevê-se que o servidor público estável somente perderá o cargo: a) em virtude de sentença judicial transitada em julgado; b) mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; c) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada a ampla defesa. Por fim, determina-se, como condição para a aquisição da estabilidade, a obrigatoriedade de uma avaliação especial de desempenho por comissão constituída para esta finalidade.
Segundo a nova sistemática proposta pela reforma administrativa, somente adquirirá estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício de cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, na forma da lei. Ainda, propõe-se que o servidor público estável ocupante de cargo típico de Estado somente perderá o cargo: a) em razão de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado; b) mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa. Deixou-se, contudo, ao encargo do legislador infraconstitucional o ônus de detalhar os conceitos de: 1) gestão de desempenho; 2) condições de perda dos vínculos e dos cargos típicos. Ao fim, expressou-se na proposta a vedação do desligamento de servidores por motivação político-partidária.
A investidura em cargo público também sofre alteração. Agora, para assumir um cargo público, o cidadão dependerá de aprovação em concurso público contendo as seguintes etapas: 1) provas ou provas e títulos; 2) cumprimento de período de, no mínimo, um ano em vínculo de experiência com desempenho satisfatório, para cargo por prazo indeterminado, e de, no mínimo, dois anos em vínculo de experiência para cargo típico de Estado; 3) classificação final dentro do quantitativo previsto no edital do concurso público, entre os mais bem avaliados ao final do período do vínculo de experiência.
Com respeito aos idealizadores da PEC 32/2020, mas não é difícil encontrar graves lacunas constitucionais para defender que, nos termos da redação original, a mudança almejada trará muito mais prejuízos do que benefícios à eficiência do serviço público. E a crítica começa por algumas relevantes indagações: desligar o servidor do cargo com maior facilidade vai necessariamente resultar em melhoria na prestação do serviço público? A falta de produtividade do servidor tem relação direta com a estabilidade no cargo público? É possível afirmar que dentro do funcionalismo público existem cargos mais importantes e nobres do que outros a ponto de um merecer a estabilidade e o outro não?
A falta de solução efetiva nas propostas da PEC 32/2020 para o aumento de eficiência do serviço público decorre do seguinte:
1) Inexistência de caráter inovador: boa parte dos institutos sugeridos já consta na normativa constitucional atual, mas com terminologia distinta;
2) Ao invés de evoluir para se tornar mais enxuto, objetivo e eficiente, com a proposta do novo artigo 41, o regime jurídico administrativo revela-se mais complexo, confuso e aberto (subjetivo). Por exemplo, com a intenção de inovar, tenta-se retirar do servidor a garantia de perda do cargo apenas mediante decisão judicial transitada em julgado, autorizando que uma decisão colegiada, ainda que não esgotada a ampla defesa, seja suficiente para desligamento definitivo do cargo;
3) Aumento da pessoalidade e da relação de subordinação hierárquica perversa dentro do funcionalismo: a PEC avaliza cenários de assédios e perseguições quando condiciona que a estabilidade somente será adquirida após o término do vínculo de experiência seguido de mais um ano de efetivo exercício em cargo típico de Estado. Ou seja, o Brasil terá candidatos a servidores públicos que dependerão de julgamentos extremamente subjetivos, os quais, para serem efetivados, poderão sofrer as mais nefastas chantagens a fim de atenderem aos interesses pessoais e imorais de seus chefes ou examinadores;
4) A pirâmide da desigualdade social será aperfeiçoada pela desigualdade jurídico-administrativa: cargos típicos de Estado, notadamente aqueles que o legislador futura e livremente escolher como tais, serão, para a Constituição, juridicamente mais importantes do que os “atípicos” ou “inferiores”. O Brasil assumirá de uma vez por todas a existência de castas dentro do funcionalismo, como se o poder-dever de atender ao interesse público fosse mais relevante para uns e menos para outros, a ponto de tornar estes últimos, os “atípicos”, não merecedores da garantia de estabilidade e de impessoalidade;
5) Diversos institutos estratégicos e nucleares foram delegados para o legislador infraconstitucional regulamentar ou até mesmo conceituar. Assim, o que seria uma garantia alterável somente mediante reforma constitucional, passará a ser tema de disputa política no campo da lei ordinária ou complementar. O perigo é que a juridicidade poderá ser deixada de lado para privilegiar, mais ainda, os grupos de poderes inseridos na Administração Pública. O futuro do serviço público ficará nas mãos dos mais influentes no Congresso Nacional.
Por tudo o que foi dito até aqui, não fica difícil concluir que estabilidade tem a ver com proteção contra pressões políticas e econômicas, revelando-se na prática como uma armadura revestida por independência e impessoalidade. E não faz sentido imaginar que somente alguns poucos cargos poderão ser privilegiados com tal garantia quando outros tantos desempenham equivalente papel fundamental na esfera administrativa. Por qual motivo um juiz de Direito deverá ser privilegiado com estabilidade, mas o servidor público que trabalha no cartório não? Analista judiciário não sofre pressão política e econômica?
Não passa de um sofisma o pensamento segundo o qual: “A estabilidade é nada senão um contrato vitalício, sem contrapartida, e quanto menor ela for, maior será a produtividade e mais moderna e eficiente será a Administração Pública”. Até hoje não foi apresentado qualquer dado empírico capaz de sustentar essa lógica desenhada pela PEC 32/2020.
Pode-se dizer que a estabilidade está sendo usada como escudo para encobrir a inércia do Congresso Nacional em cumprir com o seu dever de regulamentar o artigo 41, §1º, III, da Constituição. Há mais de 23 anos que a PEC 19/1998 delegou esta incumbência aos legisladores infraconstitucionais e até hoje não se sabe quais são os critérios de aferição de boa eficiência e de bom desempenho dentro do funcionalismo público. Assim, é no mínimo perverso afirmar que o servidor é improdutivo sem antes lhe oferecer um parâmetro de código de conduta a ser respeitado. Mais perverso ainda é manter sob o mesmo regime um servidor produtivo e outro improdutivo sem legalmente exigir deste último o cumprimento de seus deveres de desempenho laboral eficiente.
Desde o dia 19/04/2017, o Projeto de Lei Complementar n° 116 de 2017, de relatoria da senadora Maria do Carmo Alves, em trâmite no Senado Federal, procura colocar fim à omissão de regulamentação do procedimento de avaliação periódica de desempenho [5].
A proposta de avaliação do desempenho profissional prevê quatro fases: a) planejamento; b) acompanhamento das atividades realizadas pelo avaliado; c) avaliação de desempenho profissional; e d) retorno ao servidor público sobre os pontos que devem ser melhorados ou reforçados. O referido projeto cria ainda fatores avaliativos fixos divididos em “qualidade” e “produtividade” e fatores avaliativos variáveis consistentes em doze itens, quais sejam: 1) relacionamento profissional; 2) foco no usuário/cidadão; 3) inovação; 4) capacidade de iniciativa; 5) responsabilidade; 6) solução de problemas; 7) tomada de decisão; 8) aplicação do conhecimento; 9) compartilhamento de conhecimento; 10) compromisso com objetivos institucionais; 11) autodesenvolvimento; 12) abertura a feedback.
O fator fixo “qualidade” buscará avaliar se o servidor realiza os trabalhos de forma adequada à finalidade a que se destinam, observando as normas e os procedimentos do órgão, e toma as providências necessárias para evitar a reincidência de erros e contribuir para a melhoria contínua; por sua vez, o fator fixo produtividade terá como meta saber se o servidor avaliado realiza os trabalhos a ele atribuídos com tempestividade, contribuindo para a obtenção dos resultados da unidade com eficiência e eficácia.
A partir disso, o objetivo é que os servidores sejam avaliados pelos fatores avaliativos fixos “produtividade” e “qualidade”, acrescidos de cinco fatores variáveis, escolhidos de acordo com as atividades primordiais a serem realizadas no período avaliativo.
Como já disseram Leonardo Secchi e Marco Antonio C. Teixeira, a estabilidade é uma política de gestão pública essencial que resolve o impasse entre racionalidade burocrática versus racionalidade eficiente [6]. O Brasil precisa de servidores públicos estáveis para se livrar cada vez mais da pecha de ser um país patrimonialista e clientelista. Estabilidade é sinônimo de atos administrativos independentes, impessoais e democráticos.
Em síntese, o problema não está na estabilidade, mas no que o regime jurídico administrativo fez com o instituto. Nenhuma discussão haveria se a estabilidade existisse em conjunto com critérios objetivos e idôneos de avaliação de produtividade que promovesse um controle maior da eficiência do serviço público. A questão é que, porque o Legislativo se omite em seu dever de regulamentar o já mencionado artigo 41, §1º, III, da Constituição, o regime jurídico acabou ficando apenas com os bônus da estabilidade, esquecendo (propositalmente) os seus ônus.
[1]Cf.:https://www.camara.leg.br/noticias/784231-comissao-sobre-reforma-administrativa-debate-condicoes-para-estabilidade-no-servico-publico/
[2] Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=-NOjfsqsXL8&feature=youtu.be
[3] Cf.:https://folhadirigida.com.br/concursos/noticias/especial-fd/reforma-administrativa-votacao-agosto
[4] Prova disso é que das 45 emendas apresentadas, 18 dizem respeito à estabilidade de servidores públicos e à definição de carreiras típicas de Estado. Veja: https://www.camara.leg.br/noticias/789039-estabilidade-e-carreiras-de-estado-sao-tema-de-18-emendas-a-reforma-administrativa/
[5] Cf.: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128876
[6]Cf.:https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/trajetorias-e-perspectivas-sobre-a-estabilidade-do-servidor-publico-contribuicoes-para-a-reforma-administrativa/
Publicado em 15 de agosto de 2021, às 8h00. Na coluna Público & Pragmático na Revista Consultor Jurídico.
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