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STF e a defesa da democracia

Direito Público - 23 de maio de 2022

STF e a defesa da democracia

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* Artigo publicado originalmente no portal JOTA, no dia 23 de maio de 2022. Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil.

Por Gustavo Justino de Oliveira** e Eduardo de Carvalho Rêgo***

eleição em 2018 de um presidente antissistema provocou uma guinada na vida política do Brasil; cogita-se, inclusive, de um mandato atrelado à ideia de “antipolítica” e não à política tradicional. Além de uma mudança de rumo administrativo, a eleição de Jair Bolsonaro anunciou o rompimento ideológico para com valores democráticos até então consagrados, como o respeito à diversidade, à ciência, à urna eletrônica e às competências constitucionais dos Poderes instituídos.

A exemplo do que já havia ocorrido em outros países, notadamente na Hungria e nos Estados Unidos, no “novo Brasil” as ideias (quase sempre simploriamente rotuladas de “conservadoras”) difundidas pelo presidente da República e por seus apoiadores acabaram seduzindo relevante parcela da sociedade, sobretudo por meio das chamadas fake news. Foi muito por conta delas que ganhou corpo a equivocada noção de que a liberdade de expressão autorizaria a verbalização de literalmente qualquer coisa, como, por exemplo, a exaltação da ditadura militar, a relativização da proteção ao meio ambiente e da cultura indígena, a possibilidade de fechamento do Congresso Nacional e a destituição e prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal.

Evidentemente, a postura de Bolsonaro e de seus apoiadores foi e continua sendo muito questionada pelos mais diversos atores políticos, os quais, via de regra, enxergam no atual contexto nacional um verdadeiro “estado de exceção”, a justificar a tomada de providências extraordinárias (ou pouco comuns na realidade brasileira pós-redemocratização) na defesa da Constituição Federal de 1988 e de suas consagradas instituições.

Desde as eleições de 2018, talvez a primeira grande providência tomada pelo STF em defesa da democracia tenha sido a instauração do Inquérito nº 4.781/DF, popularmente identificado como inquérito das fake news, instaurado por conta dos ataques de teor antidemocrático promovidos pelos apoiadores do presidente da República contra os membros da Corte. Inclusive, após diligências, o próprio Bolsonaro foi incluído, em agosto de 2021, como investigado no aludido inquérito.

No mesmo sentido, chama a atenção a recente condenação criminal do deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de prisão, por conta de manifestações antidemocráticas não protegidas pela imunidade parlamentar e pela liberdade de expressão, que incluíam ameaças ao próprio STF e, especificamente, a alguns dos ministros da Corte.

Em resposta à decisão proferida pelo STF, o presidente da República editou decreto em pleno feriado do dia 21 de abril de 2022, concedendo “graça constitucional” ao aludido deputado federal, em nome da “liberdade de expressão”, da “manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição dos poderes” e da “legítima comoção social” provocada pelo caso. Na verdade, a medida adotada por Bolsonaro foi compreendida pela opinião pública como mais um ato antidemocrático editado com a finalidade de atingir o STF.

Não isenta de críticas, muitas delas pertinentes, a postura (por vezes ativista) do STF vem sendo compreendida, por muitos, como uma possível expressão da chamada democracia defensiva – doutrina de matriz europeia que recomenda uma postura mais enérgica dos detentores do poder estatal, sobretudo o Judiciário, contra partidos e grupos não democráticos.

Com efeito, é sabido que o Judiciário tem o dever de zelar pela manutenção da forma prevista no art. 1º da Constituição Federal, que é o “Estado democrático de Direito”, explicitamente protegido pelo Código Penal, com a edição da Lei 14.197/21. De modo que, se outro Poder estiver flertando com a ruptura institucional, cabe a ele lançar mão de esforços extraordinários para evitar que isso aconteça.

Assim sendo, cabe o questionamento: o inquérito das fake news – assim como outras medidas similares, como a própria condenação de Daniel Silveira – pode ser compreendido como uma manifestação legítima da democracia defensiva, contribuindo os seus frutos, ao lado de outras decisões de teor similar, para a formação de uma doutrina de democracia defensiva no Brasil?

A esta altura, parece evidente que as providências tomadas pelo STF foram levadas a efeito como medidas de democracia defensiva para garantir que o Estado brasileiro não padeça com atos antidemocráticos. Não devem ser compreendidas como uma ação orquestrada ou corporativista dos membros da Corte. A excepcionalidade que assola o Brasil nos últimos anos não permite uma atuação que privilegie a forma sobre o conteúdo, isto é, um minimalismo interpretativo em favor de um governo autoritário, a deferência em relação aos atos perpetrados por um agressor, a inércia em resposta a um ato direcionado contra a Constituição Federal.

Diante disso, o que se conclui é que, até o presente momento, o STF tem sido criterioso na condução dos procedimentos contra atos antidemocráticos, inclusive se preocupando em compatibilizá-los com a doutrina da democracia defensiva. Nesse sentido, é bastante plausível antever que os precedentes em questão têm o potencial de contribuir para a construção de uma jurisprudência constitucional metodologicamente compatível com a aludida doutrina no Brasil e que seja sempre proporcional na legítima reação aos agudos ataques sofridos pelo Estado democrático de Direito.

Referências

**Gustavo Justino de Oliveira é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor, advogado especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados

***Eduardo de Carvalho Rêgo é Doutor em direito constitucional (UFSC). Advogado, árbitro e consultor especializado em direito público