Por Gustavo Justino de Oliveira e Otavio Venturini.
A nova Lei de Licitações assume explicitamente a relevância dos programas de integridade no âmbito das contratações públicas. Se por um lado, as previsões da Lei nº 14.133/21 sobre o tema possuem inegável potencial para representar um marco no aperfeiçoamento das relações público-privadas; por outro, a sua efetivação traz grandes desafios à Administração Pública, sobretudo em face do nível de maturidade dos programas de integridade no Brasil e do risco de estímulo aos sham programs (ou programas “para inglês ver”) [1].
Vale mencionar que a inserção da temática do compliance em leis brasileiras de contratação pública não é, propriamente, uma novidade; outras leis e projetos de leis estaduais e municipais já haviam adotado caminho semelhante — as mais notórias são a Lei nº 7.753/2017 do Estado do Rio de Janeiro e a Lei nº 6.112/2018 do Distrito Federal [2]. Por essa razão, os principais contributos, de partida, da Lei nº 14.133/21 são a horizontalização do tema para todo o âmbito federativo e a pacificação de questionamentos acerca da constitucionalidade de leis aprovadas por outros entes, considerando a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação (artigo 22, XXVII, da CF) [3].
As opções do legislador — que terão aplicação sobre licitações e contratos das Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios — consagram quatro funcionalidades para adoção de programa de integridade:
a) Requisito obrigatório nas execuções contratuais (de obras, serviços e fornecimentos) de grande vulto: nos casos de contração de grande vulto (em que o valor estimado da contratação supera R$ 200 milhões), o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato (artigo 25, §4º);
b) Critério geral de desempate entre licitantes: em caso de empate entre duas ou mais propostas, o desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle, será levado em consideração como uns dos critérios de desempate entre as propostas — o quarto e último, em ordem de relevância, critério de desempate (artigo 60);
c) Imposição e dosimetria de sanções administrativas: na aplicação das sanções serão considerados a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle (artigo 156, §1º); e
d) Condição para a reabilitação do licitante: nos casos de aplicação da sanção pela prática de atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei nº 12.846/13 (Lei Anticorrupção) ou apresentação de declaração/documentação falsa no certame ou durante a execução do contrato, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade é condição de reabilitação do licitante ou contratado (artigo 163, parágrafo único).
Na mesma linha de diplomas anteriores [4], a ênfase do modelo adotado pelo legislador federal para contratações de grande vulto está situada na aferição a posteriori à celebração do contrato, privilegiando, assim, a oportunidade de adequação dos licitantes, uma vez que a verificação da implantação do programa de integridade deverá ocorrer no prazo de seis meses, contados da celebração do contrato. Vale o registro de que se trata de uma opção, diversa da aferição a priori, em que a existência do programa de integridade pode ser definida como requisito de habilitação ou mesmo critério técnico para pontuação dos licitantes [5].
Os maiores desafios práticos à Administração Pública, gestores dos contratos e licitantes para a garantia da eficácia das previsões situam-se na forma de comprovação e metodologia de avaliação dos programas de integridade. A colocação de questões simples ajuda a situar alguns desses desafios: a quem (gestor/órgão) incumbirá as funções de avaliação e fiscalização dos programas de integridade? Quais os parâmetros e metodologia para a avaliação e fiscalização dos programas de integridade? O (gestor/órgão) responsável está capacitado para exercício de tais funções?
As respostas ainda não foram dadas.
O legislador, no artigo 25, §4º, da Lei nº 14.133/21, transferiu para regulamento — ainda não existente — a definição das medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo descumprimento das obrigações relacionadas a programas de integridade.
Espera-se que a regulamentação vindoura se beneficie da experiência e dos parâmetros de avaliação de programas de integridade já consolidados pela Administração Pública Federal, sob o protagonismo da Controladoria-Geral da União (CGU), no enforcement da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13), não divergindo significativamente, portanto, de parâmetros consolidados em normas e standards existentes [6](com destaque ao Decreto n° 8.420/2015, Portaria CGU nº 909/2015 e standards da CGU [7]).
Outro aspecto bastante sensível para efetivação das exigências de compliance é a definição de competências e a capacitação dos gestores ou órgãos responsáveis pela aferição das medidas. Uma análise comparativa, tomando como exemplo as Leis nº 7.753/2017 (RJ) e Lei nº 6.112/2018 (DF), revela a opção desses entes de incumbir ao gestor do contrato a função fiscalizatória.
Sem qualquer pretensão de propor soluções de lege ferenda nessas brevíssimas linhas, ressalta-se que o êxito da nova regulamentação dependerá da adoção de parâmetros que assumam como diretriz geral a não aceitação de sham programs para fins de cumprimento das exigências da Lei nº 14.133/21, recusando-se a validação de programas de integridade meramente formais e ineficazes quanto à mitigação de riscos relativos a atos lesivos contra a Administração Pública [8].
Finalmente, o alcance de tais parâmetros — seja na regulamentação do tema pelo Poder Executivo Federal, seja na sua aplicação pelas Administrações Públicas — pode e deve se beneficiar do intercâmbio de boas práticas e metodologias de avaliação de programas de integridade desenvolvidas por órgãos de controle interno (controladorias-gerais) de todo o país para fins de enforcement da Lei Anticorrupção, desde a sua entrada em vigor [9], e promoção de ações de reconhecimento e fomento à adoção voluntária de programas de integridade [10].
[1] Sobre o nível de maturidade no compliance no Brasil, consultar a 4ª edição da “Pesquisa Maturidade do Compliance no Brasil” (2019), elaborada pela KPMG. Disponível em: <https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2019/10/pesquisa-maturidade-compliance.html>. Acesso em: 13.05.2021
[2] Acerca do histórico e das diferenças entre os modelos regulatórios presentes em outras leis e projetos de leis estaduais e municipais, ver: CARVALHO, André Castro, VENTURINI, Otavio. Discussões sobre as novas regras locais de compliance na Administração Pública. Congresso em foco. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/discussoes-sobre-as-novas-regras-locais-de-compliance-nas-contratacoes-publicas/>. Acesso em: 13.05.2021; LOSINSKAS, Paulo Victor Barchi; FERRO, Murilo Ruiz. Exigência de Compliance nas licitações e contratações públicas. In: CARVALHO, André Castro, ALVIM, Tiago Cripa, BERTOCCELLI, Rodrigo, VENTURINI, Otavio. Manual de Compliance. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
[3] Sobre as discussões sobre constitucionalidade, ver: DE ALENCAR ARARIPE, Cíntia Muniz Rebouças; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Os programas de integridade para contratação com a administração pública estadual: nudge ou obrigação legal? Um olhar sobre as duas perspectivas. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 385-404, 2018.
[4] Notadamente: Lei nº 7.753/2017 do Estado do Rio de Janeiro e Lei nº 6.112/2018 do Distrito Federal
[5] CARVALHO, André Castro, VENTURINI, Otavio. Discussões sobre as novas regras locais de compliance na Administração Pública. Congresso em foco. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/discussoes-sobre-as-novas-regras-locais-de-compliance-nas-contratacoes-publicas/>. Acesso em: 13.05.2021.
[6] Sobre a elaboração de standards pela própria Administração Pública e no campo do combate à corrupção, ver: VENTURINI, Otavio. Teorias do direito administrativo global e standards: Desafios à estatalidade do Direito. Grupo Almedina, 2020.
[7] A CGU tem elaborado e dado publicidade a variados formatos de standards relativos a programas de integridade. A despeito das diferentes nomenclaturas (“Guia”, “Manual”, “Diretrizes” e “Cartilha”), os standards do órgão indicam melhores práticas para obtenção de grau ótimo na implementação ou aprimoramento de programa de integridade na iniciativa privada ou no setor público. Os mesmos se encontram disponíveis em: <https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/integridade/colecao-programa-de-integridade>. Acesso em: 13.05.2021.
[8] Para maiores discussões sobre efetividade e avaliação de programas de compliance, ver: SOLTES, Eugene; CHEN, Hui. Why compliance programs fail – and how to fix then. Harvard Business Review, march-april 2018.
[9] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; Lei anticorrupção brasileira completa 5 anos: a corrupção diminuiu? Migalhas. 2018.
[10] À guisa de exemplificação, menciona-se: o Selo Mais Integridade (CGU) e o Selo Pró-Ética (CGU). Os selos consistem em programas de reconhecimento de boas práticas de promoção da integridade e de prevenção da corrupção, por meio da avaliação com rigorosa metodologia e divulgação de lista de empresas aprovadas que adotam voluntariamente um programa de integridade.
Publicado em 6 de junho de 2021, às 8h02. Na coluna Público & Pragmático na Revista Consultor Jurídico.
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