*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático, da revista Consultor Jurídico, no dia 28 de agosto de 2022
Além de uma mudança de rumo administrativo, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 — um presidente antissistema em um contexto atrelado à ideia de “antipolítica” — anunciou o rompimento ideológico para com valores democráticos até então consagrados, como o respeito à diversidade, à ciência, à urna eletrônica e às competências constitucionais dos Poderes instituídos.
Como ocorrido em outros países, a exemplo da Hungria e dos EUA, no “novo Brasil” as ideias (quase sempre simploriamente rotuladas de “conservadoras”) difundidas pelo presidente da República e por seus apoiadores acabaram seduzindo relevante parcela da sociedade, sobretudo por meio das chamadas fake news — a partir das quais ganhou corpo a equivocada noção de que a liberdade de expressão autorizaria a verbalização de literalmente qualquer coisa, como a exaltação da ditadura militar, a relativização da proteção ao meio ambiente e da cultura indígena, a possibilidade de fechamento do Congresso Nacional e a destituição e prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal.
Evidentemente, a postura de Bolsonaro e de seus apoiadores foi e continua sendo muito questionada pelos mais diversos atores políticos, os quais, via de regra, enxergam no atual contexto nacional um verdadeiro “estado de exceção”, a justificar a tomada de providências extraordinárias (ou pouco comuns na realidade brasileira pós-redemocratização) na defesa da Constituição Federal de 1988 e de suas consagradas instituições.
Desde 2018, talvez a primeira grande providência tomada pelo STF em defesa da democracia tenha sido a instauração do Inquérito nº 4.781/DF, popularmente identificado como inquérito das fake news, instaurado por conta dos ataques de teor antidemocrático promovidos pelos apoiadores do presidente da República contra os membros da corte. Inclusive, após diligências, o próprio Bolsonaro foi incluído, em agosto de 2021, como investigado no aludido inquérito.
No mesmo sentido, chama a atenção a recente condenação criminal do deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de prisão, por conta de manifestações antidemocráticas não protegidas pela imunidade parlamentar e pela liberdade de expressão, que incluíam ameaças ao próprio STF e, especificamente, a alguns dos ministros da corte. Frise-se que posteriormente, em 21 de abril de 2022, Bolsonaro concedeu “graça constitucional” ao deputado, em nome da “liberdade de expressão”, da “manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição dos poderes” e da “legítima comoção social” provocada pelo caso. Na verdade, a medida adotada por Bolsonaro foi compreendida pela opinião pública como mais um ato antidemocrático editado com a finalidade de atingir o STF.
Não isenta de críticas, muitas delas pertinentes, a postura (por vezes ativista) do STF vem sendo compreendida, por muitos, como uma possível expressão da chamada democracia defensiva — doutrina de matriz europeia que recomenda uma postura mais enérgica dos detentores do poder estatal, sobretudo o Judiciário, contra partidos e grupos não democráticos. Sabe-se que o Judiciário tem o dever de zelar pela manutenção da forma prevista no artigo 1º da Constituição Federal, que é o “Estado democrático de Direito”, explicitamente protegido pelo Código Penal, com a edição da Lei 14.197/21, de modo que, se outro Poder estiver flertando com a ruptura institucional, cabe a ele lançar mão de esforços extraordinários para evitar que isso aconteça.
Assim sendo, cabe o questionamento: o inquérito das fake news — assim como outras medidas similares, como a própria condenação de Daniel Silveira — pode ser compreendido como uma manifestação legítima da democracia defensiva, contribuindo os seus frutos, ao lado de outras decisões de teor similar, para a formação de uma doutrina de democracia defensiva no Brasil?
A esta altura, parece evidente que as providências tomadas pelo STF foram levadas a efeito como medidas de democracia defensiva para garantir que o Estado brasileiro não padeça com atos antidemocráticos. Não devem ser compreendidas como uma ação orquestrada ou corporativista dos membros da corte. A excepcionalidade que assola o Brasil nos últimos anos não permite uma atuação que privilegie a forma sobre o conteúdo, isto é, um minimalismo interpretativo em favor de um governo autoritário, a deferência em relação aos atos perpetrados por um agressor, a inércia em resposta a um ato direcionado contra a Constituição Federal.
Diante disso, o que se conclui é que, até o presente momento, o STF tem sido criterioso na condução dos procedimentos contra atos antidemocráticos, mediante uma atuação próxima à doutrina da democracia defensiva. Nesse sentido, é bastante plausível antever que os precedentes em questão têm o potencial de contribuir para a construção de uma jurisprudência constitucional metodologicamente compatível com a aludida doutrina no Brasil e que seja sempre proporcional na legítima reação aos agudos ataques sofridos pelo Estado democrático de Direito.
Referências
Gustavo Justino de Oliveira é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), advogado, árbitro e consultor especializado em Direito Público.
Eduardo de Carvalho Rêgo é doutor em Direito Constitucional (UFSC), advogado, árbitro e consultor especializado em Direito Público