Por Gustavo Justino de Oliveira e Gustavo Schiefler.
A instituição de um permissivo normativo de caráter geral para a celebração de acordos administrativos (artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB) representou a derradeira superação da tese de que negociar soluções consensuais em processos administrativos constituiria, por si só, ato antijurídico por violação principiológica à indisponibilidade do interesse público.
Desde então, é com frequência cada vez maior que, de modo pragmático, a celebração de acordos pela Administração Pública se apresenta como medida eficiente para a resolução de processos administrativos, especialmente em casos complexos.
O crescente interesse sobre o tema dos acordos administrativos é comumente acompanhado de dúvidas sobre como alcançá-lo e sobre os direitos e as garantias dos particulares durante as negociações. Este artigo explora algumas questões consideradas centrais sobre tal problemática.
São questões inquietantes:
1) O particular interessado pode exigir que o gestor público celebre um acordo no âmbito de um processo administrativo sancionatório ou negocial?
2) Se não, o particular interessado teria, ao menos, o direito de propor um acordo e receber resposta motivada?
3) Haveria um direito à negociação de acordos com a administração pública?
4) Como se opera o limite da discricionariedade administrativa no que se refere à negociação e celebração de acordos?
Passemos à reflexão.
A premissa originária deste exercício é o reconhecimento do direito à propositura de um acordo pelo particular interessado.
Não há maiores dificuldades para tal compreensão.
Esse não somente é um direito fundado, em sentido amplo, a partir do que constitucionalmente se reconhece como direito de petição (alínea “a” do inciso XXXIV do artigo 5º da Constituição Federal), no sentido de se permitir que o particular invoque a atenção do gestor público a uma opção existente para o caso concreto, como também é um direito inerente à sistemática dos acordos em espécie já previstos em lei, que tratam de manifestação de interesse e proposta de acordo (por exemplo, artigo 16 da Lei nº 12.846/2013, sobre acordo de leniência).
Evidentemente, por reclamar bilateralidade e consensualidade, não há como se afirmar que a mera provocação do gestor público garantirá, por si, o direito de se exigir, posteriormente, a celebração do acordo.
Mas o que se assegura é que existe um direito à resposta administrativa motivada. Como é ressabido, a obrigação administrativa de apresentar resposta à provocação do particular é decorrência natural da existência do próprio direito de petição; e esse ato administrativo, de resposta à petição, naturalmente negará, limitará, afetará ou reconhecerá interesses do particular, pelo que deve ser motivado (artigo 2º, §único, VII, e artigo 50, I, da Lei nº 9.784/1999).
A discricionariedade administrativa é inerente a essa etapa preliminar, em que o gestor público, provocado a analisar uma proposta de acordo ou de negociação de acordo, deve decidir se existe ou não interesse por parte da administração pública.
A questão ganha contornos de complexidade quando avançamos para compreender as exigências legais que recaem sobre o exercício dessa discricionariedade motivada.
A motivação sobre o interesse ou desinteresse da Administração Pública em relação ao possível acordo no âmbito de processo administrativo precisa, por força de lei, levar em consideração as consequências práticas desta decisão, não sendo possível que tal motivação se restrinja a valores jurídicos abstratos (artigo 20 da LINDB). E, durante a análise das consequências práticas de se prosseguir ou não com a negociação de um acordo, a autoridade pública precisa necessariamente considerar as alternativas disponíveis (artigo 20, §único), em método comparativo consequencialista, sendo seguro concluir que, por força de lei, a celebração do acordo proposto é uma dessas alternativas disponíveis (artigo 26).
Essa é a pedra de toque que evita a arbitrariedade: o reconhecimento de que a Administração Pública possui discricionariedade para iniciar negociações para um acordo, ou para rejeitar a proposta, mas que deve exercê-la a partir de motivação legítima, sob pena de ilegalidade.
Em outras palavras, o reconhecimento de que a discricionariedade administrativa depende de motivação legítima é o que permite confirmar que os interesses públicos estão sendo materializados, e não os interesses pessoais da autoridade que o representa.
Portanto, se há liberdade para decidir por negociar ou não um acordo, há também o dever de motivar legitimamente tal decisão, o qual, se descumprido, torna essa decisão ilegal. É corolário do que bem reconhece, por exemplo, a teoria dos motivos determinantes [1], segundo a qual, mesmo se discricionário, o ato administrativo praticado a partir de motivos falsos será considerado juridicamente como inválido.
Avançando-se o raciocínio proposto, é relevante compreender que, como regra, ao exercer a sua discricionariedade, a Administração Pública não poderá revê-la, posteriormente, com base em eventos anteriores à própria decisão. Ou seja, ao exercer a discricionariedade no processo administrativo, a Administração Pública preenche um espaço decisório de modo conclusivo, havendo preclusão lógica sobre tal faculdade, ao menos no que se refere ao direito que detinha em decidir entre diferentes opções a partir das circunstâncias fáticas até então existentes.
Um exemplo pragmático que ilustra a preclusão lógica da discricionariedade administrativa: no âmbito do processo administrativo em que se estuda solução para determinada necessidade pública, a Administração Pública tem discricionariedade para promover, ou não, licitação pública para a contratação de um particular, mas, ao lançá-la, não poderá revogá-la com base em fatos anteriores a essa própria decisão — o que, neste caso, inclusive, é reconhecido expressamente em lei (artigo 71, §2º, da Lei nº 14.133/2021 e artigo 49 da Lei nº 8.666/1993).
Outro exemplo: a determinação do número de vagas abertas em um concurso público é um ato eminentemente discricionário, mas que, depois de formalizado, não pode ser revisto pela Administração, que se vincula à decisão discricionária anteriormente realizada — gerando, inclusive, sob a perspectiva jurisprudencial, o direito aos candidatos aprovados nessas circunstâncias.
Essa preclusão lógica sobre a discricionariedade exercida, que é expressão de segurança jurídica, torna-se bem relevante para o universo dos acordos administrativos e das respectivas negociações. Se, por um lado, a celebração do acordo é ato inegavelmente discricionário; é plenamente possível, por outro lado, que, durante as negociações, a Administração Pública assuma compromissos que concluam parcelas dessa discricionariedade.
É regra geral de Direito, por exemplo, que a proposta obriga o proponente, ainda que isso ocorra com o temperamento de diversas regras condicionais (vide artigo 427 e seguintes do Código Civil). Para o que interessa ao raciocínio, quer-se concluir também que, se a Administração Pública, por intermédio de seus representantes competentes, oferece, em deliberação discricionária, uma proposta ou contraproposta para celebrar acordo durante a negociação, ela se encontrará vinculada e obrigada a honrar tal proposta caso o particular a aceite.
Se a Administração avança as negociações a ponto de assumir compromissos parciais, para a formação do acordo, não poderá simplesmente e imotivadamente retratar-se em sua posição, exceto, no caso de um acordo ainda não celebrado, se surgir algum fato superveniente, relevante e suficiente para motivar a mudança de comportamento.
A relevância da diretriz de deferência administrativa às posições apresentadas durante a negociação é acentuada nos casos em que, para se negociar o acordo, as sessões de negociação avançam a ponto de o particular apresentar informações e documentos sigilosos, que, se não fosse justamente a expectativa de acordo, jamais o faria.
Exemplificando, é o caso das negociações de acordos de leniência ou de acordos de não persecução cível (ANPCs), em que o particular interessado, a fim de convencer a autoridade pública sobre a vantajosidade do acordo, entrega, durante as negociações, evidências documentais e informações sobre a prática de ilícitos, sejam elas praticadas por si, sejam praticadas por terceiros.
Sim, a possibilidade de que a negociação seja frustrada permanece até que o acordo seja efetivamente celebrado. Mas o que acontece se uma negociação avançada for, ao final, frustrada ilegitimamente pela própria Administração Pública com base em motivo falso, ou mesmo motivação inexistente ou ilegítima?
Devolvem-se os documentos apresentados, sem confecção de cópia, e se prossegue o processo sancionatório, como se nada houvesse ocorrido? E o conhecimento dos gestores públicos sobre as informações reveladas? Como assegurar que informações intercambiadas durante a negociação não ensejarão expedientes de investigação que de outro modo não aconteceriam? Como assegurar que tais informações não influenciarão decisões no respectivo processo sancionatório, em que houve a negociação frustrada de acordo?
Em casos como esse, se o ato administrativo que cessa as tratativas prévias à celebração de acordo carece de motivação legítima, então tal ato é inválido, retrocedendo-se e mantendo-se a autoridade negociante, juridicamente, em um “estado de tratativas” de expectativa de celebração do acordo. Esse estado de tratativas só poderá ser efetivamente desconstituído por meio de ato administrativo que tenha por fundamento evento de caráter excepcional e legítimo, atinente a fato superveniente cujo efeito seja suficiente para derrogar a discricionariedade legítima exercida nos atos administrativos anteriormente praticados.
Ou seja, além da imposição legal de que o ato ou a decisão ilegitimamente motivada ou mesmo imotivada não tem validade, as partes devem permanecer em estado de coisas negocial. E esse estado somente poderá ser refreado de sua inércia tendente à celebração do acordo administrativo se houver motivo excepcionalmente legítimo para a interrupção das tratativas. Nesses casos, a não celebração do acordo poderá ser injustificável ao gestor público — o que, nessas circunstâncias, pode gerar, como consequência, o reconhecimento judicial da invalidade da decisão administrativa ilegítima e do consequente direito do particular ao seu refazimento, o que, em última análise, pode levar, pela falta de outra opção administrativa justificável, à celebração do próprio acordo administrativo pretendido.
Nos casos em que as tratativas de acordo estão avançadas, como decorrência de atos negociais de ambas as partes, há de se reconhecer uma expressiva redução, ou mesmo atrofia, da discricionariedade administrativa, em respeito à boa-fé, ao princípio da eficiência e à segurança jurídica. É o que a doutrina alemã nomeou como “Redução da Discricionariedade a Zero” (“Ermessensschrumpfung ou Ermessensreduzierung auf Null”); teoria, inclusive, que é reconhecida em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, embora aplicada noutro contexto da atividade administrativa (cf. Tema 784 de Repercussão Geral).
É possível que, durante uma negociação, crie-se um estado de coisas de tal modo avançado na configuração de expectativa de direito que, embora não exista um direito ao acordo, a desconstituição das posições já assumidas pela administração demanda motivação absolutamente excepcional para que seja legítima. Assim, a decisão administrativa proferida em fase avançada de negociação de acordo administrativo e que seja fundamentada em motivação falsa ou imprópria, baseada em motivo simulado e ilegítimo, ou que omita o real e ilegítimo motivo, é nula de pleno direito, implicando a manutenção do “estado de tratativas” que tenha sido fomentado pela autoridade e pela compromitente. Esse “estado de tratativas”, geralmente avançado, só pode ser afastado excepcionalmente e por motivação hígida, por conta da mitigação, ou mesmo atrofia, in concreto da discricionariedade administrativa da autoridade legitimada (Ermessensschrumpfung ou Ermessensreduzierung auf Null), sob pena de prejuízo à efetividade do acordo e à segurança jurídica, em detrimento da confiança legítima depositada pelo particular na administração.
Portanto, à medida que avançam as negociações, e compromissos parciais são avençados, criando-se expectativas legítimas, baseadas na confiança recíproca, diminuem para os agentes públicos as possibilidades de se retroceder deliberadamente, sem que isto traga consequência jurídica à administração. Isto é, à proporção que o jogo aberto de posições e interesses prévios à celebração de qualquer acordo avançam, cria-se uma comutatividade entre o particular e a Administração, frente a qual as partes não se eximem de responsabilidade.
Se, por um lado, é certo que não há direito líquido e certo ao acordo, por outro, também é certo que, a depender de suas posições já assumidas nas negociações, não haverá mais motivação adequada para o não acordo. Nesse cenário, somente fatos novos ou descobertos posteriormente, cuja responsabilidade seja atribuível ao particular (falsidade ou incompletude das informações reveladas na negociação, por exemplo), ou fatos que inviabilizem absolutamente o prosseguimento das tratativas (por exemplo, a superveniência de uma lei proibitiva), podem criar novas razões de interesse que o transfiram a Administração Pública novamente ao campo persecutório.
A conclusão é de que, por se tratar de uma decisão administrativa de âmago discricionário, não há de se falar, aprioristicamente, em direito de se exigir a celebração de um acordo administrativo para encerrar processo administrativo sancionatório ou negocial.
Contudo, consideradas as obrigações que a lei confere para o exercício da discricionariedade administrativa, que funcionam como verdadeiras garantias aos particulares, é possível que surja, circunstancialmente, uma situação em que, pela inexistência de outra opção legítima disponível à autoridade pública, a celebração do acordo seja a única solução cabível.
[1] É a lição clássica de Hely Lopes Meirelles: “A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 181-182)
Publicado em 22 de agosto de 2021, às 8h00. Na coluna Público & Pragmático na Revista Consultor Jurídico.
Leia mais: www.conjur.com.br