*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático, da revista Consultor Jurídico, no dia 11 de dezembro de 2022
A utilização dos métodos adequados de resolução de conflitos como forma de desjudicialização de processos e de garantia à efetividade da relação contratual, no âmbito do direito público, tem adquirido forma cada vez mais robusta. A administração pública tem se empenhado no desenvolvimento técnico-jurídico-contratual, oferecendo modelos de cláusulas padrão [1] e minutas contratuais, além de todo o arcabouço normativo editado nos últimos cinco anos [2], em busca de otimizar a governança dos acordos pactuados.
Em 9/11/2022, o Ministério da Infraestrutura lançou minuta de cláusula padrão de mecanismos adequados de resolução de controvérsias, cujo texto foi apreciado no âmbito da Câmara Nacional de Infraestrutura e Regulação (CNIR), instituída pela Consultoria-Geral da União (CGU), órgão da Advocacia-Geral da União (AGU) [3].
Como parte do processo de validação da cláusula, o órgão promoveu consulta pública (9/11 – 23/11), por meio do Processo de Participação e Controle Social (PPCS), e audiência pública no auditório do Ministério da Infraestrutura, com transmissão online ao vivo (18/11) [4].
Este colunista, professor doutor Gustavo Justino de Oliveira, com apoio da advogada Manuela Albertoni Tristão, colaborou com o debate para a lapidação da cláusula, parabenizando a iniciativa e todo o trabalho dispendido pelo MInfra na elaboração de documento bastante completo e diversificado, que certamente contribuirá para a expansão dos MASCs no setor da infraestrutura.
Ademais, o professor fez sete importantes apontamentos, dignos de reflexão e que serão sintetizados neste breve ensaio, na seguinte ordem: (1) escalonamento de cláusulas; (2) tratamento de conteúdos essenciais na cláusula de resolução de controvérsias; (3) utilização da cláusula “arb-med-arb”; (4) não restrição da escolha dos árbitros à lista disponibilizada pela câmara privada eleita; (5) eficácia do arbitramento para a estabilização de decisões administrativas; (6) regulamento próprio do dispute board; e (7) benefícios da participação do amicus curiae em arbitragens envolvendo o ente público.
Inicialmente, como se sabe, a AGU é um dos órgãos públicos pioneiros a privilegiar a autocomposição e a solução adequada de conflitos, como sua atuação via CCAF. A própria minuta de cláusula padrão em comento reserva itens específicos para eventual consenso, prevendo prazo para o encerramento da tentativa de autocomposição (cláusula X.2.3 [5]). No entanto, a comissão redatora optou por afastar o instituto de cláusulas escalonadas (X.1.3 [6]).
Ocorre que a combinação de cláusulas se mostra bastante benéfica para a solução de controvérsias envolvendo entes públicos, uma vez que, estabelecendo prazo para a tentativa de conciliação, as partes poderiam chegar a um acordo de forma muito mais célere e eficaz, antes de adentrarem a um procedimento heterocompositivo. Além disso, corroborando com o pioneirismo da AGU, seria um modo de conferir maior relevância à autocomposição, atribuindo-lhe uma posição de “fase contratual” prévia.
Outra questão importante é que, na cláusula de controvérsias, sejam somente previstos conteúdos essenciais, a fim de evitar uma redação extensa e que abarque temas já tratados em lei, devido à necessária observância ao princípio da legalidade para a atuação da administração pública.
Na esteira da visão autocompositiva e considerando que, na prática, diversos procedimentos arbitrais finalizam não com um laudo arbitral de mérito, mas com uma sentença homologatória de acordo (LArb, artigo 28), o professor Gustavo Justino de Oliveira sugere a ampliação do uso da cláusula “arb-med-arb” [7], como incentivo aos acordos endoarbitrais e ao emprego da combinação de cláusulas.
Com relação ao tema lista de árbitros, embora pouco discutido, uma das novidades trazidas pela Nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos (artigo 154) [8] é a previsão de critérios objetivos para a indicação de árbitros, que vão além dos requisitos da confiança e da capacidade estabelecidos pela Lei nº 9.307/1996 (artigo 13).
Em razão disso, a minuta expressamente dispôs que a escolha de árbitros — em arbitragens envolvendo o ente público — não se restringe à eventual lista de árbitros elaborada pela câmara eleita à administração do procedimento (cláusula X.3.6.2 [9]), tendo em vista a peculiaridade da nomeação de julgadores em arbitragens em que a administração é parte [10].
Outro mecanismo interessante de solução de controvérsias públicas, mas que não foi mencionado na minuta de cláusula padrão apresentada, é o procedimento administrativo do arbitramento. A alternativa é bastante eficaz para a estabilização de decisões administrativas dentro da agência para posterior instauração de arbitragem, o que poderia ter sido abordado no teor da cláusula X.3.1.3 [11].
Já no que tange ao instituto do dispute board, é inegável o crescimento de sua utilização no Brasil, especialmente no setor de infraestrutura, que muito tem a contribuir com a governança contratual. Contudo, existe um certo risco de que os DBs brasileiros repitam, de algum modo, as fases do procedimento arbitral, o que não parece eficaz, considerando que a arbitragem pode ser utilizada caso o DB não consiga resolver eventual conflito.
É claro que esse problema pode ser contornado. No DB, diferentemente da arbitragem, participarão outros profissionais, que não apenas advogados, mas engenheiros e técnicos no assunto em pauta. Entretanto, ainda assim o professor defende a importância de que exista regulamento sobre DB externo ao procedimento, como, por exemplo, elaborado pela agência reguladora, e outro que seja próprio daquele contrato.
Isto é, como se as partes elaborassem uma espécie de “termo de arbitragem”, mas versando a respeito do procedimento do DB, a ser delineado antes do início de seus trabalhos, com o intuito de facilitar o devido processo legal, a dinâmica, possíveis omissões e lentidão na tomada de decisões.
O último comentário apontado pelo professor é a respeito da importância da previsão de participação de amicus curiae nas arbitragens com a administração. Isso porque diversos são os conflitos que tratam de direitos patrimoniais disponíveis, mas que não deixam de esbarrar em temas extremamente sensíveis, como o direito e os interesses de população ribeirinha, questões ambientais e direitos de indígenas, dentre outros.
Por isso, considerando esse cenário, o professor concluiu que talvez seja o caso de estimular na própria cláusula, ou no regulamento, a intervenção de amicus curiae, que poderão ser organizações da sociedade civil, que há muito já é realizado pela arbitragem em investimentos no exterior, contribuindo com o aumento na qualidade da decisão arbitral.
Por fim, diante do cenário de implementação da consensualidade no direito administrativo, assim como da expansão do uso de mecanismos adequados de resolução de conflitos nos mais diversos setores públicos, a iniciativa do MInfra é louvável. Não somente pela redação da minuta, mas também por permitir a contribuição técnica da sociedade, em busca da maior efetividade possível no setor de infraestrutura e que funcione como estímulo aos demais setores a escolherem o método mais adequado para os contratos a serem firmados, incentivando a governança contratual eficaz, com benefícios a ambas as partes.
[1] Cláusula modelo de solução de controvérsias como boa prática regulatória a ser adotada nos contratos de infraestrutura qualificados no âmbito do Programa de Parcerias de investimentos da Presidência da República – PPI. Minutas de cláusulas de autocomposição, Dispute Board e arbitragem já utilizadas pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e Ministério da Infraestrutura (MInfra).
[2] Alteração da LINDB pela Lei nº 13.655/2018; Decreto nº 10.025/2019; Lei nº 14.133/2021; Portarias da AGU, dentre outras.
[3] Informações disponíveis em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/minuta-clausula-padrao-mecanismos-adequados-resolucao-controversias. Acesso em: 30 nov. 2022.
[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bUsflkbDReQ. Acesso em: 30 nov. 2022.
[5] Minuta de cláusula padrão de mecanismos adequados de resolução de controvérsias, cláusula X.2.3: “Salvo disposição em contrário no termo de autocomposição ou acordo no curso do procedimento, este será encerrado findo o prazo de 60 (sessenta) dias contados da assinatura do termo pelas Partes”.
[6] Minuta de cláusula padrão de mecanismos adequados de resolução de controvérsias, cláusula X.1.3: “Os esforços de que trata o item X.1.1 não constituem etapa autônoma e obrigatória prévia aos demais mecanismos de resolução de controvérsias”.
[7] A respeito do tema de cláusulas arb-med-arb em procedimentos envolvendo a administração pública, o professor Gustavo Justino de Oliveira e a advogada Manuela Albertoni Tristão, em coautoria, escreveram artigo científico a ser publicado ainda neste ano (2022) em livro da Advocacia-Geral da União.
[8] Lei nº 14.133/2021, artigo 154: O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.
[9] Minuta de cláusula padrão de mecanismos adequados de resolução de controvérsias: X.3.6.1 Caso a designação do presidente do Tribunal Arbitral não ocorra no prazo de 30 (trinta) dias corridos, a contar da confirmação do segundo árbitro, ou não haja consenso na escolha, a câmara arbitral eleita procederá à sua nomeação, nos termos do seu regulamento. X.3.6.2 A escolha de qualquer dos árbitros não está restrita à eventual lista de árbitros que a câmara arbitral eleita possua.
[10] A respeito do tema de lista de árbitros em procedimentos envolvendo a administração pública, o professor Gustavo Justino de Oliveira e a advogada Manuela Albertoni Tristão, em coautoria, escreveram artigo científico a ser publicado em obra coletiva em homenagem ao dr. Frederico Straube.
[11] Minuta de cláusula padrão de mecanismos adequados de resolução de controvérsias: X.3.1.3 As partes poderão se valer da arbitragem após decisão definitiva da autoridade competente, insuscetível de reforma por meio de recurso administrativo, ou quando não houver decisão administrativa em tempo hábil.
Referências:
Gustavo Justino de Oliveira é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília), árbitro, mediador, consultor, advogado especializado em Direito Público e Membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.
Manuela Albertoni Tristão é advogada na área de arbitragem e solução de conflitos no escritório Justino de Oliveira Advogados e pós-graduada em Direito Civil e Empresarial.