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A figura do ‘neutro’ nos contratos administrativos no Brasil

Revista ConJur - 12 de janeiro de 2024

A figura do 'neutro' nos contratos administrativos no Brasil

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*Artigo publicado originalmente no ConJur, no dia 7 de Janeiro de 2024

O artigo 151 da Lei Federal nº 14.133/21, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC),  estipula que “nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”.

Diante do conteúdo da regra, cumpre-nos indagar quais seriam eventuais outros métodos possíveis de solução extrajudicial de controvérsias contratuais para além desses mecanismos e institutos mais tradicionais, elencados pelo legislador.

Este artigo visa apresentar linhas gerais de um método de inspiração anglo-saxônica, que começa ter previsão em cláusulas de contratos administrativos no Brasil, geralmente contratos de obra pública, e que têm potencialidades significativas na prevenção e gestão dessas controvérsias: refiro-me à figura do “neutro”.

Venho chamando a atenção em minhas palestras e artigos mais recentes para a necessidade de se evitar o uso indiscriminado, generalizado e isolado de um único mecanismo de solução de controvérsias contratuais, [1] destacado da apropriada adoção prévia de uma Política de Tratamento Adequado/Desjudicialização de Conflitos Públicos — e não somente contratuais —  como um todo.

No radar há de entrar em cena atualmente a essencialidade da adoção, pela Administração Pública da União, estados e municípios, de Diretrizes e Normas para a Gestão Pública e Advocacia Pública (Regulamentos, Leis, Enunciados, etc) de um uso estratégico e racional dos ADRs, a partir de standards e guias de boas práticas, afastando-se o seu uso irracional, sob pena de banalização e neutralização dos ADRs no setor público, e retorno às práticas de litigância judicial.

Indubitavelmente, isso seria “a perda de uma chance” nesse momento histórico de se encarar de frente a oportunidade que a legislação brasileira nos tem concedido, qual seja a de se estruturar um Desenho de Sistema de Disputas (DSD) aplicado aos contratos administrativos.

E por DSD entendemos a Prevenção, Gestão e Resolução das Controvérsias — aplicação, integração, customização e uso estratégico de ADR  (Alternative Dispute Resolution) e NDR (Negotiated Dispute Resolution) no campo das controvérsias contratuais da Lei Federal nº 14.133/21.

Bons exemplos de integração de ADRs e NDRs no setor público podem ser elencados em todos os âmbitos federativos:

Federal: ANTT — Resolução nº 5845, 14 de maio de 2019 — dispõe sobre as regras procedimentais para a autocomposição e a arbitragem no âmbito da ANTT. Está em processo de atualização, para abranger os Dispute Boards;

Estados: Mato Grosso do Sul — Decreto nº 16.247, de 7 de agosto de 2023 — dispõe sobre arbitragem e os Comitês de Prevenção e Resolução de Disputas no âmbito dos contratos de parceria previstos na Lei n. 5.829, de 9 de março de 2022;

Municípios: Lei nº 17.324, de 18 de março de 2020 — Institui a Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta da Cidade de São Paulo, mais a Lei nº 16.873, de 22 de fevereiro de 2018 (regulamentado pelo Decreto nº 60.067, de 10 de fevereiro de 2021);

Ainda nessa toada, digna de nota no âmbito do CNJ, é a Recomendação nº 140, de 21 de agosto de 2023 — recomenda e regulamenta a adoção de métodos de resolução consensual de conflitos pela Administração Pública dos órgãos do Poder Judiciário em controvérsias oriundas de contratos administrativos. [2]

Entendo que estamos nos encaminhando sim para a estruturação de Sistemas de Prevenção, Gestão e Resolução de Conflitos Públicos, ainda incipiente e muito desigual em termos de práticas, cultura de pacificação e regulamentações do uso de ADRs, se formos considerar as realidades díspares da União, dos Estados e principalmente, dos Municípios brasileiros. Sem prejuízo disso, precisamos avançar na temática e na prática, e por isso gostaria de trazer algumas linhas sobre o uso do “neutro” nos contratos administrativos.

Um primeiro aspecto a ser destacado é a necessidade de valorização da prevenção e gestão das controvérsias contratuais — e não somente da solução — segmentos nos quais o uso de novos métodos de ADR e NDR no Brasil detém grandes potencialidades.

Mas o que é o “neutro” ou “Avaliação do Terceiro Neutro”, também referido na literatura como “Expert Determinator”, “Early Neutral Evaluation-ENE” e “Case Evaluation”?

O “neutro” tem inspiração nos sistemas anglo-saxônicos da common law, ali mais inserido e praticado em processos adjudicatórios judiciais, mas que também pode ser realizado por experts privados escolhidos pelas partes de comum acordo (extrajudicial), geralmente a partir de previsão em cláusula contratual (autonomia da vontade das partes).

Trata-se de um profissional qualificado e experiente, assim reconhecido pelo mercado e pelas partes do contrato — geralmente contratos complexos e de longa duração, p. ex. construção e/ou operação de hidrelétricas — que detém a confiança das partes para apoiá-las a resolver entre si (autocomposição) questões e controvérsias de natureza técnico-jurídica e/ou contratual, no intuito de impedir a escalada de tensões entre as partes e a prevenção de conflitos decorrentes do contrato, que geralmente foi celebrado tendo prazos de média ou longa duração.

Geralmente o “neutro” emite uma opinião ou parecer técnico-jurídico, que norteia as partes com esclarecimentos e caminhos possíveis para resolverem dúvidas, disputas ou controvérsias contratuais de per si (pela via da negociação ou autocomposição), e poderá atuar por um tempo específico (“mandato”), por ciclos contratuais ou mesmo por número previamente determinado de temas e questões que lhes sejam confiados pelas partes.

Com a opinião abalizada do “neutro” sobre o mérito da controvérsia — geralmente não tem força vinculante e não se trata de decisão adjudicatória em si — as partes podem aderir ou não ao seu posicionamento, formalizando acordos autocompositivos endocontratuais ou, no caso de “não acordo”, podem se encaminhar para uma mediação, conciliação, dispute board, arbitragem ou mesmo o Judiciário.

O parecer do “neutro” funciona como um “reality check” para as partes — antecipa possíveis posicionamentos de um juiz ou tribunal arbitral que venha a ser chamado a decidir sobre o tema mais à frente — e geralmente é confidencial, de caráter opinativo e não pode servir de prova, indício ou evidência em um julgamento arbitral ou judicial

A finalidade do trabalho do “neutro” é promover negociações mais realistas entre as partes, tendo por referência a opinião prévia e abalizada de um expert, atenuando o número de divergências ou disputas que as partes podem vir a ter, no caso de “não acordo” e encaminhamento de seus dissensos para um julgamento arbitral ou judicial (adjudicatório).

Comparativamente aos custos financeiros e de oportunidade de uma arbitragem, dispute board, ou mesmo processo judicial, o “neutro” pode ser compreendido como um método mais econômico, técnico, eficiente e independente, que atua em tempo real à execução do contrato, promovendo um ambiente de maior confiança entre as partes, justamente em virtude da presença de um expert — geralmente um advogado — e que vai atuar sobretudo na prevenção e boa gestão dos conflitos contratuais.

Em termos de Dispute System Design-DSD, a avaliação do “neutro” não se equipara a uma mediação, e de certo modo qualifica o ambiente de negociação entre as partes acerca de disputas que exsurjam da execução do contrato, e portanto, funciona bem como mecanismo de prevenção e/ou gestão de controvérsias contratuais, diminuindo a litigiosidade entre as partes e chances de maior judicialização ou uso da arbitragem. [3]

Concluindo, o tema dos ADRs no setor público avança cada vez mais, e caminha para além dos usos individualizados e isolados de um ou outro método. Para fins de redução da litigiosidade dos conflitos públicos — com destaque para os de natureza contratual da Lei Federal nº 14.133/21 e legislação afim — é preciso prosseguir, não somente com as experiências com ADRs, mas com a integração dos mecanismos tradicionais e novos mecanismos — como o neutro —  sob a ótica do Dispute System Design, voltado à prevenção, gestão e resolução dos conflitos públicos.

Daí decorrem políticas de tratamento adequado dos conflitos públicos e sua consequente desjudicialização, escalando-se para a institucionalização de um sistema integrado de gestão de conflitos públicos e da intensificação da justiça conciliativa pelo Poder Público.

É nesse sentido inclusive que apontam as estatísticas e achados sobre o Índice de Conciliação publicizados pelo CNJ nas páginas 192/193 do Relatório Justiça em Números 2023, que assinala: a) o aumento de unidades de Cejuscs em todos os segmentos do Poder Judiciário — 1.437 em 2022 — em oito  anos este número triplicou, e b) sendo que houve um aumento de 9,6% de sentenças homologatórias de acordo em relação a 2021, totalizando em 2022 mais de 3.508.705 sentenças homologatórias de acordo.

Estamos avançando dia a dia, com cooperação e colaboração de todos os atores do sistema de justiça, garantindo-se assim uma efetiva Justiça Multiportas, com ganhos consideráveis de níveis de acesso à Justiça para todos os cidadãos.

Experimentar novas figuras e mecanismos, explorando suas potencialidades no âmbito dos conflitos contratuais — por exemplo com o uso do “neutro” —  parece ser um caminho acertado para a intensificação e a consolidação das práticas de ADRs e NDRs em nosso país, ainda com uma cultura de litigância acentuada e que tanto mal faz para a pacificação dos conflitos que envolvem a Administração Pública de todas as esferas da Federação.

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[1] Este artigo baseia-se na palestra por mim proferida na Fiesp, no dia 30.10.2023, em evento promovido pela AGU e pela Câmara Ciesp/Fiesp, o qual pode ser assistido no YouTube:    https://www.youtube.com/watch?v=qQqnOJCTiNQ Agradeço a Dra. Rita Nolasco, cocoordenadora do evento, pelo amável convite formulado para dele participar.

[2]Cf. https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5177

[3] O autor baseou-se na própria prática e experiência para escrever estas linhas, e também em AMSLER, Lisa Blomgren et al. Dispute System Design: preventing, managing and resolving conflict. Stanford: Stanford University Press, 2020.

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