Justino de Oliveira Advogados
Logo Branca Logo Preta

STF e a análise do conflito de interesses na arbitragem

Arbitragem com o Poder Público - 30 de maio de 2023

STF e a análise do conflito de interesses na arbitragem

COMPARTILHE

*Artigo publicado originalmente no portal Jota, no dia 30 de maio de 2023

GUSTAVO JUSTINO DE OLIVEIRA e MANUELA ALBERTONI TRISTÃO 

Discussões acaloradas sobre a atuação dos árbitros e o respectivo dever de revelação ganharam vez na comunidade arbitral brasileira, especialmente diante da propositura do PL 3293/2021, que busca alterar a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996) para delimitar a nomeação de profissionais como árbitros.

Nessa linha, em março deste ano, o partido União Brasil ajuizou a ADPF 1050, visando, dentre diversos pleitos, a unificação da jurisprudência brasileira quanto ao dever de revelação do árbitro, sob o fundamento de que as partes não têm o dever de investigá-lo, mas é ele quem precisa revelar tudo aquilo que lhe for questionado, caso contrário, estará impedido de atuar nessa função; e ainda pleitearam o impedimento da aplicação das diretrizes da International Bar Association (IBA) sobre conflito de interesses.

Não por menos, o tema merece reflexão mediante análise de alguns pontos significativos que serão elencados neste breve texto.

Inicialmente, importante trazer à tona o cenário da arbitragem como método privado e adequado de solução de conflitos no âmbito internacional – que impera a vontade das partes e a liberdade de escolha de aplicação legal – “importado” para o direito brasileiro, cuja cultura jurídica, além de ser extremamente litigante, tem sua base no direito positivo (civil law), de modo que a lei é fonte imediata e principal fundamento para a resolução de litígios.

Por outro lado, os conflitos internacionais submetem-se a outra lógica, sendo comum a existência de diretrizes que refletem as práticas internacionalmente aceitas no intuito de orientar os players de diferentes culturas jurídicas a solucionarem eventuais impasses sem que tenham de se submeter ao sistema jurídico alheio.

Portanto, para se solidificar no Brasil, a arbitragem teve de se moldar ao direito brasileiro, o que foi feito. São mais de duas décadas de vigência da Lei de Arbitragem, que abriu portas para outros textos legais normatizarem o instituto não somente na esfera do direito privado, como também na do direito público. Como exemplo, pode-se citar a Lei 13.105/2015, que incorporou a possibilidade da utilização da arbitragem (e de meios autocompositivos) no Código de Processo Civil, e a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), que regulamenta o instituto nos contratos administrativos – em que pese já fosse previsto pela Lei de Concessão e Permissão (Lei 8.987/1995, atualizada pela Lei 11.196/2005)

Apesar das adequações necessárias, o instituto da arbitragem permanece (e deve permanecer) com as suas principais características que inevitavelmente envolvem a prática internacional, como a autonomia, vontade e liberdade das partes de escolherem aquilo que melhor couber a sua disputa. Isso porque a natureza jurídica da arbitragem é contratual.

Por isso, quando a ADPF ajuizada questiona o modo como o dever de revelação é tratado, acaba deixando de lado toda a lógica própria do instituto da arbitragem, na tentativa de equipará-lo ao método da jurisdição do Poder Judiciário.

Ocorre que não é bem assim. As normas da legislação brasileira de arbitragem já muito balizam o procedimento, sendo proposital a existência de normas gerais, que possibilitam a customização do processo de acordo com a vontade das partes.

Nesse cenário, essencial se faz a utilização de guidelines com a finalidade de orientar os usuários do instituto. Assim como advogados, médicos, engenheiros, servidores públicos e demais classes profissionais possuem seus códigos de ética, na arbitragem não é diferente. Mas, em se imperando a vontade das partes, uma soft law parece muito mais útil do que uma hard law, que limita sobremaneira o desenho da disputa, descaracterizando o instituto.

Ora, não é dizer que as diretrizes da IBA sobre conflito de interesses possuem aplicação automática ao procedimento, mas elas balizam os sujeitos processuais, que podem dela se utilizar para complementar a Lei de Arbitragem e demais regulamentos aplicáveis, a fim de que seja alcançado o bem da vida, em observância à ordem pública.

Outrossim, a divulgação de determinada situação não implica na imediata ausência de imparcialidade e independência de um profissional para ocupar a função de árbitro, mas a violação desse dever pode causar dúvidas quanto à idoneidade, o que inevitavelmente dependerá da análise do caso concreto.

Durante muito tempo, o dever de revelação foi considerado de norte subjetivo. Com a entrada da Administração Pública como novo player da arbitragem no Brasil, disputas de altíssimo cunho financeiro e de interesse nacional passaram a serem tuteladas também pela jurisdição arbitral – e não mais exclusivamente pela jurisdição do Poder Judiciário –, de modo que o resultado desses procedimentos deixou de ser somente de interesse privado das partes para impactar também na economia brasileira e em inúmeros setores regulados.

Assim, veio à tona a polêmica da nomeação reiterada de profissionais para a função de árbitro, pelas mesmas partes, o que parece ter causado insegurança nos players sobre as decisões arbitrais.

Nesse quesito, é de se considerar a criação de standards mais objetivos para a diversificação da nomeação de profissionais qualificados para a mencionada função, que não tenham qualquer relação com as partes, com seus patronos ou com o litígio. A nova Lei de Licitações já reflete esse posicionamento, quando dispõe sobre a necessária observância aos critérios isonômicos, técnicos e transparentes para o processo de escolha dos árbitros, em seu artigo 154[1].

É claro que os julgadores da arbitragem, embora vinculados ao dever de revelação, não estão obrigados a divulgar todas as situações pelas quais já viveram que poderiam, talvez, remotamente, causar algum tipo de impacto às partes, sob pena de submeterem uma desnecessária biografia.

Mas, há de se convir, que a utilização de critérios mais objetivos pode ser uma saída para esse impasse, sem que seja alterada a legislação ou até mesmo a lógica do instituto arbitral, tendo em vista que situações causadoras de conflito de interesses, falta de imparcialidade e independência e dúvidas justificáveis dependerão necessariamente do exame do caso concreto, por isso, difícil se ter uma norma taxativa.

Ademais, parece útil a elaboração de uma espécie de “teste” da imparcialidade e independência do árbitro a ser aplicado pelas câmaras arbitrais quando submetem os questionários de declaração de idoneidade aos profissionais, momento em que realizam o disclosure, colaborando com a “autorregulação” da arbitragem.

Outra alternativa é a previsão legal de aplicação de sanções ligadas à má-fé das partes e dos árbitros quando da indicação, caso venham a ocultar, propositalmente, situação sensível, que deveria ter sido revelada em momento oportuno, com a finalidade única de que a contraparte aceite a indicação do profissional indicado na busca de interesse próprio.

Por fim, outra contribuição que poderá ser feita pelo STF, em termos institucionais, é que as câmaras arbitrais organizem, internamente, os comitês de impugnação. Como exemplo, a Câmara do Mercado faz uso dos Comitês de Impugnação, que se mostram bastante eficazes para o caso concreto. A divulgação, também, dos critérios utilizados nas decisões desses comitês parece pertinente, resguardadas as informações sigilosas.

A própria CAM, assim como outras instituições, possui um ementário público de decisões arbitrais, cujo escopo é o direcionamento dos players, ao lado de outras soft laws adequadas ao caso.

A preocupação da comunidade arbitral frente aos questionamentos da arbitragem no Brasil é pertinente. O que se vê em mais de duas décadas de vigência da Lei de Arbitragem é que o ordenamento jurídico brasileiro comporta o Sistema Multiportas – inclusive incentivado pelo CNJ através da Resolução 125/2010 –, o qual está cada vez mais requintado e incentivado pelo Judiciário

Nem sempre uma norma posta será capaz de sanar as deficiências do sistema. Talvez reste aos profissionais uma maior abertura para o consensualismo estratégico, a ser promovido mediante diálogo entre as partes e seus patronos, com o fim de diminuir a alta litigiosidade e, consequentemente, adaptando o direito doméstico também às demandas internacionais.

[1] Também a AGU, em consonância com o Decreto nº 10.025/2019 (art. 12), editou a Portaria nº 42, de 7 de março de 2022, ampliando os requisitos para a escolha de árbitros, como: deter conhecimento da natureza do contrato – de acordo com a formação profissional, área de especialidade, nacionalidade e idioma (par. 1º, art. 2º); não incidência em situações que gerem conflitos de interesses; e não ocupar cargo das carreiras jurídicas da AGU, PGF e PG do Banco Central (incisos do art. 2º, Portaria AGU nº 24/2022).