*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático, da revista Consultor Jurídico, no dia 30 de outubro de 2022
Por Manuela Albertoni Tristão e Nathália Dalbianco
Está em todos os lugares. Em letras garrafais nas manchetes dos mais importantes jornais brasileiros. Nos temas das principais reportagens de televisão. Nos artigos científicos produzidos na academia. Não há como se esquivar. A inovação tecnológica é a “bola da vez“. Mas, afinal, qual a sua importância no contexto brasileiro? E mais: por que os contratos administrativos de inovação merecem uma gestão estratégica de conflitos?
Responder a essas perguntas é, também, um convite para rememorar o processo paradigmático daquilo que se entende por desenvolvimento socioeconômico.
Na base da pirâmide, governo e indústria, de forma secular, compõem os elementos clássicos do fomento econômico das sociedades. De início, esses atores já foram considerados “figuras antagônicas“. Isto é, mercado de um lado, Estado de outro, como se travassem entre si uma guerra invisível, marcada pela radical sobreposição de interesses. Nessa perspectiva dual, pouco produtiva, as relações precisaram ser estreitadas para garantir um processo de assistência mútua, em que mercado e Estado transformaram-se em protagonistas das chamadas parcerias público-privadas, responsáveis por conduzir o sucesso econômico mundo a fora.
Noutro giro, e sob os efeitos da globalização e da interdependência global, as relações sociais tomaram formas cada vez mais sofisticadas, ensejando que o sistema bilateral, público-privado, não se concentrasse somente na exploração do trabalho operada pelo mercado ou na infraestrutura tipicamente fornecida pelo Estado. Era preciso mais.
A sociedade contemporânea, por sua própria natureza, passou a exigir que as soluções para os problemas cotidianos sejam céleres, eficientes e compatíveis a era da informação e do desenvolvimento tecnológico. Em diversas situações, inclusive, essas respostas precisam ser integralmente criadas, pois aquelas que já eram velhas conhecidas da sociedade não mais encontram guarida na pós-modernidade.
É nesse contexto em que se derrubam as “torres de Marfim” [1] para trazer ao centro uma importante personagem, antes coadjuvante, e que agora se torna companheira de protagonismo do Estado e do mercado: as universidades. Isso porque as universidades, por meio do desenvolvimento de pesquisas, assumem papel de suma importância, ao converter o conhecimento produzido em soluções das quais a sociedade carece e transformá-los, também, em conteúdo de expressão econômica [2].
Um exemplo disso é o contrato de transferência tecnológica celebrado entre a empresa Astrazeneca UK Limited e a Fundação Oswaldo Cruz/Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, em 1 de junho de 2021, em que um dos objetivos era a disponibilização da vacina contra o vírus Covid-19 — causador da pandemia de 2019 a meados de 2021 — no Brasil a preços acessíveis [3].
Diante disso, as interações universidade-mercado-governo formam uma “tríplice hélice”, encarada como ponto chave para o crescimento econômico e para o desenvolvimento social cunhado a partir do conhecimento, revelando, assim, o caráter de inovação e empreendedorismo [4].
No Brasil, a Lei Federal de Inovação (L. 10.973/2004) foi responsável por regulamentar a forma de estabelecimento entre essa aliança pública-privada no setor produtivo, bem como por incentivar a pesquisa científica e tecnológica, pautando-se na busca de atividades de transferência de tecnologia e de fomento à ambientes propícios para a inovação [5].
Essa troca entre governo-empresa-universidades, que mantém a máquina em funcionamento pelo desempenho cíclico das três hélices, embora promissora, também é terreno fértil para o surgimento de conflitos. Afinal, estão em jogo interesses de três atores distintos, nem sempre conciliáveis de forma trivial.
Considera-se, ainda, que esses três personagens têm à disposição uma série de possibilidades contratuais, regidas por um ecossistema normativo relativamente novo e compostas por uma complexa teia de atores e de relações comerciais.
Em consequência disso, pensar em estruturas adequadas à gestão dos conflitos é fator imprescindível para garantir a viabilidade e a perenidade do sistema.
Evidentemente, a arbitragem, a mediação e a negociação são alguns dos mecanismos que integram a face consensual do Direito Administrativo, em que o Estado visa a estabelecer vínculos contínuos com a sociedade, buscando a eficiência de suas ações [6]. No entanto, socorrer-se a tais mecanismos significa, em outras palavras, paralisar a execução dos contratos até que haja uma decisão determinante ou um acordo; desgastar relações de longo prazo e, especialmente, assumir custos consideráveis.
Neste artigo, a proposta é voltar aos olhos para uma solução que está longe de ser uma novidade em solos brasileiros, mas cuja aplicação ainda é incipiente, a estes velhos problemas: os dispute boards — ou comitê de resolução de disputas.
O comitê surgiu como mecanismo adequado de solução e prevenção de conflitos, especialmente para contratos de longa duração, em que um ou três profissionais especializados e independentes acompanham a execução do contrato do início ao fim, promovendo o gerenciamento de divergências que possam surgir, no intuito de prevenir e auxiliar a resolução de disputas.
Assim, os membros do comitê, que já estão familiarizados com o assunto e em contato direto com as partes, tomam conhecimento de eventuais ruídos de comunicação e/ou gargalos contratuais em tempo real, muitas vezes apreciando-os antes mesmo do surgimento do litígio [7].
Uma vez adotado pelas partes, o Dispute Board pode ser manejado em três diferentes modalidades: (a) comitê com a função de fornecer recomendações sem força vinculativa — dispute review boards (DRB); (b) comitê cuja função é proferir decisões vinculantes para a continuidade do contrato — dispute adjudication boards (DAB); e, por fim, (c) comitê cujo caráter é híbrido, uma vez que combina ações de mera recomendação e decisões obrigatórias — combined dispute boards (CDB) [8].
Embora sua utilização esteja comumente ligada à execução de grandes contratos de infraestrutura — como a construção da segunda parte do Túnel Eisenhower nos Estados Unidos (1975) e a construção da Linha 4 do Metrô de São Paulo (2003-2015)[9] —, os dispute boards não são específicos de um único setor. Pelo contrário. Esse mecanismo pode — e deve — ser aplicado aos diferentes tipos contratuais, desde que sua aplicação seja vantajosa e eficiente [10]. É o caso dos contratos administrativos de inovação e de promoção das atividades científicas e tecnológicas.
Em razão da relevância socioeconômica assumida pelos contratos administrativos de inovação — como o de transferência tecnológica e o de encomenda tecnológica —, é imprescindível, para sua sustentabilidade, que sejam identificados de antemão os possíveis imprevistos que poderiam tornar o contrato mais oneroso ou que, ainda pior, pudessem inviabilizar sua execução. Essas características são, justamente, pontos principais oferecidos pelos dispute boards.
Vale dizer que segundo o Dispute Resolution Board Fundation (DRBF), a mera previsão do comitê nos contratos já é suficiente para inibir as partes de apresentarem divergências infundadas, permitindo que os profissionais integrantes do comitê se concentrem nas questões de relevância [11].
Assim, se, por um lado, a interação entre universidades-governo-mercado consagra a inovação como forma de crescimento socioeconômico, por outro lado, os dispute boards oferecem os atributos necessários para garantir a plena execução dos contratos. E é a sinergia entre esses dois elementos que permite que as três hélices continuem, de forma harmônica, em pleno funcionamento, com arranjos cada vez mais dinâmicos e apropriados para a inovação e o empreendedorismo.
Referências
*Manuela Albertoni Tristão é advogada na área de arbitragem e solução de conflitos no escritório Justino de Oliveira Advogados e pós-graduada em Direito Civil e Empresarial.
*Nathália Dalbianco é advogada e mestranda em Direito Negocial pela Univerisdade Estadual de Londrina (UEL).
[1] Expressão popular para designar a universidade como um ambiente estritamente teórico, desconectado das preocupações práticas e pragmáticas da vida cotidiana.
[2] ETZKOWITZ, Henry; ZHOU, Chunyan. Hélice Tríplice: inovação e empreendedorismo universidade-indústria-governo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 23-48, maio 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000200023&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 25 out. 2022.
[3] Disponível em: https://portal.fiocruz.br/documento/contrato-de-transferencia-tecnologica-entre-astrazeneca-e-fiocruz. Acesso em 27 out. 2022.
[4] ETZKOWITZ, Henry; ZHOU, Chunyan. Hélice Tríplice: inovação e empreendedorismo universidade-indústria-governo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 23-48, maio 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000200023&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 25 out. 2022.
[5] LOBO JUNIOR, Mario Cesar; BADDAUY, Letícia de Souza. Política de inovação, proteção de conhecimento e empreendedorismo: um estudo da relação entre a Universidade Estadual de Londrina e o setor produtivo. Cadernos de Prospecção, v. 14, n. 2, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/nit/article/view/36490. Acesso em: 25 out. 2022.
[6] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Governança pública e parcerias do Estado: novas fronteiras do Direito Administrativo. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 1, p. 113-121, 2012).
[7] WALD, op. cit.
[8] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; CARVALHO, Thaís Strozzi Coutinho. Comitês de resolução e prevenção de disputas (dispute boards) nos contratos de concessão de rodovias federais: primeiras impressões e prospecções no Direito Administrativo brasileiro. In: Augusto Neves Dal Pozzo e José Virgílio Lopes Enai. (Org.). Tratado sobre o Setor de Rodovias no Direito Brasileiro. 1ª ed.: Contracorrente, 2022, v. 1 e 2, cap. XXX, p. 51-61.
[9] WALD, Arnold. Dispute resolution boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, Thomson Reuters, v. 30, p. 139–151, jul-set 2011; JOBIM, Jorge Pinheiro; RICARDINO, Roberto; CAMARGO, Rui Arruda. A experiência brasileira em CRD: o caso do metrô de São Paulo. CRD – Comitê de Resolução de Disputas nos Contratos (DRB – Dispute Resolution Board) de Construção e Infraestrutura: uma abordagem prática sobre a aplicação de dispute boards no Brasil, São Paulo, ed. 1, p. 169-191, 2016.
[10] SKITNEVSKY, Karin Hlavnicka. Dispute boards: meio de prevenção de controvérsias. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 53.
[11] DISPUTE RESOLUTION BOARD FOUNDATION. A Guide to Best Practices and Procedures Manual. Disponível em: https://www.drb.org/dispute-board-manual. Acesso em: 28 out. 2022.